“Mundo dos desaparecimentos” e mundo invertido: o espírito do tempo como inquietação pura da vida
Por Ivonaldo Leite
Adelmo Genro Filho, gaúcho de São Borja/Santa Maria, foi um vigoroso intelectual brasileiro que não mediu consequências no empenho em defesa das suas ideias. Jovem, em 1988, enquanto era preparado um livro no qual ele tinha responsabilidade direta, reunindo textos de autores como Ernst Bloch e Karl Korsch,1 ocorreu a sua morte. Prestando-lhe uma espécie de homenagem, ao final do livro, acrescentou-se uma nota sobre o seu percurso. Nota curta, mas que, a meu ver, foca com pertinência a temática deste curto artigo, e que exerce influência sobre o seu desenvolvimento. Aqui do que trato é do “mundo dos desaparecimentos”, da finitude, do que nos deixa, com olhos distantes e a vaguear, observando o horizonte – seja o posto à nossa frente, seja aquele que mentalmente projetamos, e em função do qual damos passos. “Mundo dos desaparecimentos” talvez seja um modo de dizer, porque, ao fim e ao cabo, o que aqui está em causa é a clássica e magistral Fenomenologia do Espírito, de Hegel. “Mundo do que findou”, ‘mundo invertido’, possivelmente poder-se-á dizer. Mundo diverso do ‘mundo do aparecimento’, no tocante à forma. As palavras em alemão bradadas por Goethe sobre a existência: ‘Alles nahe werde fern’ (‘tudo que é próximo se afasta’). Ademais, trata-se de uma reflexão que calha própria ao contexto de tantas perdas familiares decorrentes da pandemia do novo coronavírus.
A morte, como o disse Hegel,2 se quisermos chamar a essa irrealidade, é a coisa mais espantosa, e guardar o que está morto é o que exige uma maior firmeza. Ela é, por um lado, o resultado final do processo de um indivíduo singular, que vive e age numa sociedade universal, e, por outro lado, ela é a negatividade natural do indivíduo que ocorre no tempo, mas que cancela o tempo absoluto do indivíduo que morre. Essa coisa espantosa cancela a existência consciente do indivíduo, indivíduo que só pode existir no espaço e no tempo, na História. A morte faz o indivíduo sair da universalidade quieta, da negatividade abstrata. À esta universalidade quieta, o morto é remetido como originalidade natural, como ente que, assim sendo, deixa de ser uma diferença, deixa de ser uma alteridade e um outro. Ele, volta ao mesmo, ao nada. Pelo que, na morte natural, como cancelamento da alteridade existente, não se pode encontrar nenhum consolo e nem reconciliação.
O indivíduo, ao morrer, regressa à
indiferencialidade da natureza, cancelando-se a sua extensividade ativa e
consciente. Cindindo-se o ser individual do agir no
morto, ele torna-se uma singularidade vazia e passiva. Passa a ser lembrança de
um nome carente de realidade. Este nome é somente nome para os outros que o
lembram. Ele deixou de ser nome para si mesmo, ele deixou de ser autorreferência.
Por isso, a maioria dos mortos permanece como uma lembrança quieta na sombra
das famílias, e então assim pode-se dizer que esta visão sobre a morte
constitui o lado morto do morto ou a morte do indivíduo
propriamente natural.
Se o indivíduo for pensado somente como indivíduo
até o fim, e é necessário – por um momento – que assim ele o seja, o indivíduo
pensado será um ‘indivíduo natural’. Então, dessa maneira, o fim é trágico. Não
há saída. Para a universal pergunta Para onde vamos?, só
existe uma resposta: ‘Para lado nenhum’.
Mas, e que pensamentos e sentimentos experimentamos
em relação ao desaparecimento de um ente querido? Aqui parece que é
possível estabelecer uma analogia em relação àquilo que Hegel expressou no que
concerne à contemplação das ruínas históricas. A morte e as ruínas
históricas evocam necessariamente uma reflexão sobre a degradação temporal,
sobre o irrecorrível desaparecimento dos indivíduos e das coisas. Os
sentimentos que experimentamos perante esse tribunal do tempo nos
provocam uma deprimente tristeza. Constatamos que uma vitalidade consciente, uma
pessoa estimada e querida, morreu, e então nos atormentamos no desconsolo das
lembranças.
Assim é a morte. Ela nos proporciona uma pergunta
sem resposta: ‘Por quê?’. Por não termos resposta, emerge uma dor profunda e,
diante desta instância incontrolável, a melancolia que se apodera de nós ora
nos oprime na sensação do desaparecimento total, ora nos indaga sobre o
significado e a validade das vidas individuais. Se a sensação vazia do
desaparecimento que sentimos, diante do túmulo, nos provoca o luto e nos
aprisiona à passividade, é na indagação sobre o significado e a validade das
vidas individuais onde podemos encontrar o caminho que nos conduz a superar as
reflexões nostálgicas, para nos devolver a nós mesmos, ao mundo ativo da História.
Perante o morto não há consolo, pois ele pertence
ao domínio do desaparecimento e da finitude. Somente com o nosso retorno ao
mundo ativo da história dos seres humanos vivos, podemos nos reconciliar
com a universalidade da vida. Quer dizer, é na reconciliação com a vida, que
nos nega consolo, que temos o lugar onde poderemos encontrar a valorização do
desaparecido. Contudo, não como desaparecido, mas na expressão de sua
universalidade vivida, no produto de sua atividade, que se apresenta como
legado, e na significação exemplificativa de sua vida.
Isto é, o que sobrevive é a produção consciente e
socialmente significativa dos indivíduos. De onde decorre que, quanto mais universal
for esta produção, mais eles sobrevivem. Apenas os seres individuais
conscientes podem ter uma história singular socialmente significativa. Só os
seres humanos podem ter uma biografia. E assim sendo, cabe dizer que uma das lições que a
experiência negativa da morte nos ensina, cancelando a existência concreta, é
que somente o espírito, a consciência, é imortal - ele é eterna-mente.
Novamente com Hegel, aqui, se deve dizer que a vida do espírito não é a
vida que se ausenta diante da morte e se mantém pura da desolação, mas é a vida
que sabe afrontar a morte e manter-se vida.
É tanto mais significativa a história/biografia do
indivíduo quanto mais ele toma conhecimento e tira todo o proveito possível de
uma das constatações existencialistas de Sartre, na versão fenomenológica que lhe é própria: A contingência do mundo aparece à realidade
humana na medida em que a realidade humana se estabeleceu a si mesma sobre o
nada; o mundo está suspenso no nada: o nada jaz encolhido no ventre do ser.3
Hegelianamente falando, quer dizer, entendendo que
o indivíduo se torna indivíduo por seu agir, por sua atividade, na qual ele não
é um indivíduo simplesmente porque é um ser humano existente, mas sim pela
dignificação e atividades universais em que traduz a sua vida, então, mesmo que
a morte natural cancele a extensividade consciente e ativa dos indivíduos, pode
falar-se de um lado vivo de determinados indivíduos
mortos. Isto significa pensar os indivíduos – no caso, os desaparecidos –
como seres que viveram num determinado tempo e espaço, que integraram uma
sociedade, que agiram e buscaram afirmar e desenvolver a sua individualidade
como exemplos significativos para os outros, como uma lição de vida e de
existência para os demais. Estes deram-se a si mesmos uma perspectiva
universal, da qual eles são a realidade.
Tal fio condutor nos permite pensar a historicidade
dos indivíduos e a historicidade humana. A História é o único terreno no qual
pode haver reconciliação com o passado, visto que, nela, dialogamos com os
nossos antepassados como seres iguais a nós, pois dialogamos na dimensão
espiritual e consciente. Falamos de
consciência histórica. A nossa historicidade nos permite falar sobre o passado,
e trazê-lo para o ‘aqui e o agora’. Assim, uma realidade passada e morta
transmuta-se em uma realidade presente e viva. O reflexo do mundo
invertido hegeliano: o tempo é uma inquietação pura da vida; nada é, tudo vem a
ser.
NOTAS
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1 - O livro era Filosofia e
Práxis Revolucionária, sendo também responsável por ele Cássia Coríntha
Pinto e Jefferson Goulart; São Paulo: Brasil Debates Editora, 1988.
2 - As referências a Hegel, ao longo do texto, são feitas tendo como fonte a versão espanhola da Fenomenologia do Espírito publicada por Fondo de Cultura Económica (Buenos Aires, 1ª ed,, 1966).
3 - Ver Sartre, volume da coleção Os Pensadores, tradução de Rita Correia Guedes, Luiz Roberto Salinas Forte, Bento Prado Júnior; São Paulo: Nova Cultural, 1987.
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